EU ME SINTO INVENCÍVEL
A jornada do ator Marco Pigossi para assumir sua homossexualidade
Há tempos que a sexualidade de estrelas do showbiz “choca zero pessoas”, mas o caso de Pigossi tinha um ingrediente especial. Com uma carreira artística de doze anos, ele interpretou galãs em oito produções da TV Globo – e galãs, ainda hoje, temem perder seu público e arruinar a carreira se revelarem sua homossexualidade. Pigossi escolheu não renovar com a Globo no final de 2017 e passou a trabalhar na Netflix. Por meio do Skype, da casa em Los Angeles onde mora com Calvani há um ano e meio, Pigossi deu um testemunho sobre sua jornada ao repórter João Batista Jr.
Na minha pré-adolescência, lembro que nunca tive um amigo, um vizinho, um primo ou um tio homossexual, pelo menos assumidamente. Nenhum gay frequentava a casa dos meus pais, em São Paulo. Então, quando comecei a perceber minha orientação, achei – ou quis achar, na verdade – que se tratava de algo passageiro. Eu não tinha referência alguma no meu convívio e, quando assistia à televisão, nada servia como alento. Nas novelas ou nos programas de humor, quase sempre os gays eram retratados de forma caricata, pejorativa. Então, me sentindo solitário e sem amparo, me restava torcer para que fosse apenas uma fase.
Decidi estudar teatro. Tinha 15 anos. Era uma vocação, mas era também uma fuga. No mundo das peças, dos livros e dos palcos, eu podia ser qualquer coisa, inclusive o que de fato sou. Quando voltei da primeira aula, falei para minha mãe: “Vou ser ator.” Depois de interpretar alguns personagens secundários na TV Globo, consegui finalmente um papel de destaque em Caras & Bocas, do Walcyr Carrasco. A novela foi ao ar em 2009, e meu personagem, o Cássio, era um gay afeminado que falava o bordão “fiquei rosa chiclete”, como sinônimo de “estou passado”. A frase caiu no gosto do público. O personagem e a própria novela fizeram um tremendo sucesso. Na minha cabeça, não havia nenhuma margem de chance para eu me assumir. Se fizesse isso, todas as portas se fechariam para mim de forma automática.
Aos 20 anos, eu estava realizando o grande sonho de trabalhar como ator na maior indústria de entretenimento do país, mas vivia um drama pessoal: sentia calafrio só de pensar que o público poderia desconfiar que a sexualidade do personagem e do ator era a mesma. Essa possibilidade me aterrorizava. Os fãs vinham falar comigo, repetindo o bordão “rosa chiclete”, e eu estendia a mão com firmeza, fazia uma voz forte, para espantar suspeitas. Era como se estivesse usando uma máscara de heterossexual. A alegria de fazer um personagem que caiu no gosto do público me trouxe aflição. Precisei de ajuda. Recorri à terapia durante a gravação da novela. Fazia análise três vezes por semana.
Eu sofria por não ser 100% verdadeiro, mas o fato de ter um corpo e modos que se encaixam num certo “padrão de heterossexualidade”, que não denunciam minha orientação, acabou me dando o que chamo – ironicamente e entre aspas – de “privilégio do armário”. Claro que não é um privilégio se esconder dos outros, mas minha aparência heteronormativa, digamos assim, talvez fosse uma defesa, uma forma de tentar me encaixar e “parecer normal”. O tal privilégio do armário me ajudava a proteger minha carreira, a proteger a mim mesmo da hostilidade, da violência, tão comuns no trato das populações LGBTQIAP+ no Brasil.
Depois do sucesso de Caras & Bocas, fiz o remake de Ti Ti Ti, de Maria Adelaide Amaral. Eu interpretava um playboy mulherengo. Depois, fiz cinco galãs em sequência. Deu certo, eu gostava disso, mas acabei ficando preso na caixa do mocinho. Quando a Globo queria um galã, me chamava porque era uma fórmula que dava resultado. Formei par romântico com grandes atrizes, como Carolina Dieckmann, Paolla Oliveira, Isis Valverde.
Enquanto vivia personagens grandes na novela das 9, estava infeliz por dentro. Seguia me escondendo. Na verdade, eu me fazia passar por um heterossexual por pura e simples manifestação de medo. Medo da minha família, medo dos meus amigos, medo da minha carreira. Até então, eu nunca tinha visto um galã de novelas falar abertamente sobre sua orientação sexual. E meu medo não era em vão.
Em 2010, o ano em que emendei Caras & Bocas direto para a novela Ti Ti Ti, li uma entrevista do Silvio de Abreu, autor de telenovelas e então diretor de dramaturgia da Globo, na Folha de S.Paulo. Ele dizia que atores gays não deviam assumir sua sexualidade publicamente, pois as donas de casa e telespectadoras em geral enxergam o galã como “machão”. Ele dizia que um ator assumido era um “bobo”, pois a revelação fatalmente prejudicaria sua carreira. Foi uma entrevista muito marcante para mim. Era uma declaração clara de que não era bem-vindo que um ator homossexual abordasse o assunto em público – e isso vinha da boca de uma figura de grande proeminência na emissora.
Era tudo uma violência. Eu estava dentro da Globo, era um ator homossexual. Não era uma manifestação de respeito à sexualidade dos funcionários, além de ser intrigante do ponto de vista profissional: afinal, a vida pessoal de um ator vem antes da sua arte? Um gay assumido não tem capacidade para viver e interpretar um galã? Eu vivia numa atmosfera de temor. Sonhei inúmeras vezes que os diretores da novela me chamavam no set para dar uma prensa, dizendo assim: “Pigossi, você precisa ser mais machão… Seu personagem está ficando gay.”
À medida que eu subia degraus na profissão, atuando como protagonista de algumas novelas, mais medo eu sentia. A mera possibilidade de que soubessem da minha vida sexual me paralisava, pois eu tinha a percepção clara de que minha carreira seria destruída. E ser ator me cura, me preenche. Eu seria um vácuo, um vazio, se as portas se fechassem.
Nos meus doze anos de vida pública, mantive um relacionamento com um homem que durou oito anos. Vivíamos juntos no mesmo apartamento. Hoje, olhando esse passado, me dou conta de que vivi situações absurdas. Em passeios nos shoppings, por exemplo, sempre que eu encontrava um conhecido por acaso, meu namorado automaticamente seguia andando para me proteger, como se eu estivesse sozinho. Ele via o tamanho do meu desespero.
A paranoia fazia com que uma simples ida ao cinema com meu companheiro, algo trivial na rotina de um casal, fosse precedida de muita angústia. Eu pedia para amigos irem conosco, só para evitar que eu fosse visto sozinho na companhia de outro homem. Era um conflito interno constante: eu não podia deixar o medo me vencer, eu tinha que ir ao cinema, mas, ao mesmo tempo, sentia um pânico de ser descoberto gay.
Entre 2011 e 2012, quando eu estava no ar com a novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva, viajei para o Rio de Janeiro, onde faria uma semana de gravações. Quando desembarquei no Aeroporto Santos Dumont, acessei a internet, abri meu celular e li uma notícia: que eu estava tendo um relacionamento com um ator da mesma novela. Era mentira absoluta. A matéria não dava os nossos nomes, mas deixava claro de quem se tratava. Chegava a dizer que nós nos “pegávamos” nos bastidores das gravações. Era tudo invenção, mas as pessoas acreditam no que querem acreditar. Eu fiquei travado ao ler aquilo.
Minha conta de WhatsApp já tinha dezenas de mensagens de pessoas próximas, que me mandavam o link da matéria. Eu havia sido marcado em centenas de menções no Twitter e no Instagram. A falsa notícia se espalhou. Então, tive uma crise de pânico, comecei a tremer e suar. Fui para o banheiro do aeroporto, me tranquei em uma cabine e comecei a vomitar. Liguei para meu parceiro, chorando. Eu dizia para mim mesmo que minha carreira tinha acabado. Não conseguia sair dali. Meu companheiro teve que pegar um voo de São Paulo ao Rio para me buscar. Fiquei horas trancado dentro da cabine, até ele chegar.
A crise me deixou com sequelas. Passei a tomar antidepressivos e ansiolíticos. O pânico de sair do armário contra minha própria vontade ficou ainda maior. Eu continuava com os pesadelos em que um diretor me chamava e pedia para eu ser mais “machão”. Outros pesadelos se tornaram recorrentes. Em um deles, alguém publicava uma matéria informando sobre a minha orientação sexual e divulgava uma foto minha ao lado do meu namorado, em um local público. Ao mesmo tempo, me senti muito mal por não ter a coragem de falar, de estender a mão, de alguma forma, para pessoas iguais a mim.
Apesar desse sofrimento, eu já tinha tomado uma decisão havia mais de oito anos: eu não mentiria. Não criaria falsas narrativas sobre namoros e romances com mulheres. Por dois anos, cheguei a me separar do meu namorado porque acabei me apaixonando por uma mulher, com a qual eu contracenava numa novela, e depois me apaixonei por uma segunda mulher. Namorei com elas porque eu queria ser hétero? Queria ser bi? Eu não sei. O certo é que me apaixonei, mas as relações não foram em frente. E eu decidi que não mentiria mais sobre o assunto. Se alguém me perguntasse sobre minha sexualidade diretamente, eu falaria. Afinal, as desconfianças e especulações sempre existiram porque eu nunca aparecia com mulheres. Só que ninguém jamais me perguntou.
Em 2017, quando completei oito anos de análise, meu terapeuta me disse algo que me tocou de uma forma especial. Ali, comecei a trabalhar a questão da aceitação, da forma como eu mesmo me via. Ele me disse: “Você vê a sua homossexualidade como uma maldição, um carma, que acarreta medo.” Ouvi e fiquei em silêncio. Ele questionou em seguida: “Será que você, exatamente por ser homossexual, não foi obrigado a olhar para dentro de você mesmo e entender medos e vontades das pessoas? Será que isso não pode te fazer um ator melhor? Será que, diante disso tudo, você não tem um panorama mais complexo de vida e histórias humanas, algo que pode ser uma boa matéria-prima na construção de personagens?”
Foi a primeira vez em que entendi que eu poderia ter uma vantagem por ser gay, que eu talvez pudesse olhar para o próximo com mais empatia. Que eu talvez pudesse ouvir, escutar, tentar experimentar a dor do outro. De início, o teatro surgiu na minha vida como uma fuga, talvez agora estivesse surgindo como salvação. Aos 15 anos, eu li Os Sofrimentos do Jovem Werther, do Goethe. Desde então, me dediquei a ler livros, assistir peças. A minha sensibilidade talvez fosse a minha virtude, e não o meu problema.
Daí em diante, começou a se desencadear em mim um entendimento do que significa “orgulho gay”. Até então, a expressão me parecia vazia. Eu fora criado em uma família, em uma realidade social em que se comentava não haver razão para celebrar o “dia do orgulho gay” enquanto não houvesse o “dia do orgulho hétero”. Eu mesmo, por falta de informação, por imaturidade, por temor de sair do armário, por uma infinidade de razões, cheguei a pensar assim. Mas esses equívocos já estavam distantes e, com o insight da terapia, as coisas começavam a tomar outra forma na minha cabeça.
E então vieram a candidatura e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Meu pai votou em Bolsonaro. Durante os oito anos do meu namoro com um homem, minha família sempre soube. Mas meu namorado e eu nunca jantamos com meu pai, que jamais perguntou sobre meu relacionamento. Meu pai e eu tínhamos o hábito de pilotar moto. Juntos, chegamos a viajar de São Paulo à Patagônia, percorrendo mais de 5 mil km. Mas, apesar da proximidade física nas viagens, sempre houve um abismo. Minha vida amorosa era um não assunto. E, quando meu pai votou em Bolsonaro, senti uma dor profunda, uma tristeza profunda.
Afinal, Bolsonaro era o sujeito que dissera preferir um filho morto a um filho gay. Que gay é resultado da falta de surra. Que não é bom alugar uma casa para um gay porque desvaloriza o imóvel. Sempre tive dificuldade de entender como um pai escolhe votar num político que insulta seu próprio filho de modo tão visceral. Meu pai e eu ficamos sem nos falar durante o ano da eleição – e até hoje temos contatos apenas esporádicos. O abismo, que já era grande, tornou-se ainda maior. Meu pai é um cara afetivo, sensível. Sou o primeiro gay com quem ele lida. Pouco a pouco, espero que ele aprenda a lidar com naturalidade.
Nesse contexto de 2018, as coisas ficaram mais pesadas. Bolsonaro dava voz aos racistas e homofóbicos, e eu estava escondido. Comecei a evoluir, a entender que todos nós da comunidade LGBTQIAP+ somos fortes quando estamos juntos. Que eu, o tal galã de novela, sou igual ao gay afeminado, igual à drag queen, às travestis, à mulher trans, às lésbicas delicadas e às masculinizadas. Somos absolutamente iguais. Eles me deram força. Ficar em silêncio, não me posicionar, não abrir o peito diante da trincheira foi deixando de ser uma possibilidade. O papel de mocinho de novela, afinal, não poderia me definir.
Comecei a me questionar inclusive sobre o dinheiro. Será que era o dinheiro que me fazia continuar preso dentro do grande armário social e artístico? Meu dinheiro, afinal, vinha do meu trabalho como ator. Nunca fui um artista requisitado para grandes campanhas publicitárias. Imagino que havia um receio por parte dos anunciantes. Deviam pensar: “Esse cara nunca namora uma mulher, vai que lançamos o produto com ele e depois sai a notícia de que é gay…”
Antes, ainda no fim de 2017, em clima de pré-eleição e em meio a essas reflexões, escolhi não renovar com a Globo e assinar com a Netflix. Queria abrir mercados internacionais, ter a experiência de interpretar outros tipos de personagens, estudar mais. Na minha cabeça, pensava que seria menos doloroso me assumir gay e trabalhar como ator morando em outro país.
Em 2019, então, me mudei para Los Angeles. Desde que saí do Brasil, fiz a série australiana Tidelands, a série espanhola Alto Mar e a brasileira Cidade Invisível, do Carlos Saldanha, todas para a Netflix. Agora em 2022, gravaremos uma segunda temporada de Cidade Invisível, em São Paulo.
Pouco depois de chegar aos Estados Unidos, tive curiosidade de conhecer Provincetown, a pequena cidade de Massachusetts que virou referência do ativismo gay quando, nos anos 1980, muitos soropositivos à beira da morte se mudaram para lá em busca de uma rede de apoio. Na cidadezinha, há uma bandeira gay em cada esquina. Dá uma enorme sensação de acolhimento e respeito.
Depois dessa visita, decidi ser produtor executivo de um documentário chamado CorPolítica, que acompanhou quatro candidatos a vereador assumidamente LGBTQIAP+ nas eleições brasileiras de 2020: Erika Hilton e William De Luca, de São Paulo, e Andréa Bak e Monica Benicio, do Rio de Janeiro. A despeito da onda fascista que varreu o Brasil em 2018, a eleição municipal, talvez já em reação ao avanço da extrema direita, bateu o recorde: nunca tantos gays saíram vitoriosos das urnas. De acordo com a Aliança Nacional LGBTI+, foram mais de setenta pessoas. O documentário discute a representatividade na política, como era antes e como é hoje. Também estou formatando outro documentário sobre a história da Aids no Brasil e o pioneirismo brasileiro na distribuição de remédios e antivirais.
Tudo isso aconteceu depois de Provincetown, onde ocorreu outro encontro: ali, conheci o Marco Calvani, o cineasta italiano por quem me apaixonei. Estamos juntos há um ano e meio. Foi Marco que, no feriado norte-americano de Ação de Graças, postou uma foto nossa de mãos dadas. Ele me avisou antes. Eu topei, mas senti uma certa apreensão. Qual seria a reação das pessoas? Ele postou, e ficamos esperando. Começaram a pipocar alguns comentários na rede. Então, decidi repostar a foto com um stories na minha própria rede. Escrevi “choca zero pessoas” para tirar onda com os comentários do tipo “ah, mas eu já sabia”. Postei e fiquei com um frio na barriga.
Logo comecei a receber muitas, muitas mensagens de amigos, de colegas de trabalho, de fãs. Recebi mais parabéns do que no dia do meu aniversário. Foi uma libertação. Uma festa. Nada como viver às claras, ser o que se é em privado e em público. Talvez os futuros galãs não sintam o mesmo medo que eu senti de perder minha carreira. Bolsonaro trouxe uma onda de ódio inacreditável, mas o efeito colateral foi fortalecer todos nós, gays. Naquele feriado, as respostas foram um alento imenso, o acolhimento de um mundo inteiro. Marco e eu convidamos uns amigos para comemorar. Tomei um porre. E hoje me sinto invencível.
via piauí